O Anticristo - XXXIII

XXXIII

Em toda a psicologia dos Evangelhos os conceitos de culpa e punição estão ausentes, e o mesmo vale para o de recompensa. O "pecado", que significa tudo aquilo que distancia o homem de Deus, é abolido ­ essa é precisamente a "boa-nova". A felicidade eterna não está meramente prometida, nem vinculada a condições: é concebida como a única realidade ­ todo o restante não são mais que sinais úteis para falar dela.

Os resultados de tal ponto de vista projetam-se em um novo estilo de vida, um estilo de vida especialmente evangélico. Não é a "fé" que o distingue do cristão; a distinção se estabelece através da maneira de agir; ele age diferentemente. Não oferece resistência, nem em palavras, nem em seu coração, àqueles que lhe são opositores. Não vê diferença entre estrangeiros e conterrâneos, judeus e pagãos ("próximo", é claro, significa correligionário, judeu). Não se irrita com ninguém, não despreza ninguém. Não apela às cortes de justiça nem se submete às suas decisões ("não prestar juramento"). Nunca, quaisquer sejam as circunstâncias, se divorcia de sua esposa, mesmo que possua provas de sua infidelidade. ­ No fundo, tudo isso é um princípio; tudo surge de um instinto. ­

A vida do salvador foi simplesmente professar essa prática ­ e também em sua morte... Não precisava mais de qualquer formula ou ritual em suas relações com Deus ­ nem sequer da oração. Rejeitou toda a doutrina judaica do arrependimento e recompensa; sabia que apenas através da vivência, de um estilo de vida alguém poderia se sentir "divino", "bem-aventurado", "evangélico", "filho de Deus". Não é o "arrependimento", não são a "oração e o perdão" o caminho para Deus: apenas o modo de viver evangélico conduz a Deus ­ isso é justamente o próprio o "Deus"! ­ O que os Evangelhos aboliram foi o judaísmo presente nas idéias de "pecado", "remissão dos pecados", "salvação através da fé" ­ toda a dogmática eclesiástica dos judeus foi negada pela "boa-nova".

O profundo instinto que leva o cristão a viver de modo que se sinta "no céu" e "imortal", apesar das muitas razões para sentir que não está "no céu": essa é a única realidade psicológica na "salvação". ­ Uma nova vida, não uma nova fé.