O Anticristo - XX

XX

Em minha condenação do cristianismo certamente espero não injustiçar uma religião análoga que possui um número ainda maior de seguidores: aludo ao budismo. Ambas devem ser consideradas religiões niilistas ­ são religiões da décadence ­ mas distinguem-se de um modo bastante notável. Pelo simples fato de poder compará-las, o crítico do Cristianismo está em débito com os estudiosos da Índia. ­ O budismo é cem vezes mais realista que o cristianismo ­ é parte de sua herança de vida ser capaz de encarar problemas de modo objetivo e impassível; é o produto de longos séculos de especulação filosófica. O conceito "Deus" já havia se estabelecido antes dele surgir. O budismo é a única religião genuinamente positiva que pode ser encontrada na História, e isso se aplica até mesmo à sua epistemologia (que é um fenomenalismo estrito) ­ ele não fala sobre "a luta contra o pecado", mas, rendendo-se à realidade, diz "a luta contra o sofrimento". Diferenciando-se nitidamente do cristianismo, coloca a autodecepção que existe nos conceitos morais por detrás de si; isso significa, em minha linguagem, além do bem e do mal. ­ Os dois fatos fisiológicos nos quais se apóia e aos quais direciona a maior parte de sua atenção são: primeiro, uma excessiva sensibilidade à sensação que se manifesta através de uma refinada suscetibilidade ao sofrimento; segundo, uma extraordinária espiritualidade, uma preocupação muito prolongada com os conceitos e com os procedimentos lógicos, sob a influência da qual o instinto de personalidade submete-se à noção de "impessoalidade" (­ ambos esses estados serão familiares a alguns de meus leitores, os objetivistas, por experiência própria, assim como são para mim). Esses estados fisiológicos produzem uma depressão, e Buda tentou combatê-la através de medidas higiênicas. Prescreveu a vida ao ar livre, a vida nômade; moderação na alimentação e uma cuidadosa seleção dos alimentos; prudência em relação ao uso de intoxicantes; igual cautela em relação a quaisquer paixões que induzem comportamentos biliosos e aquecimento do sangue; finalmente, não se preocupar nem consigo nem com os outros. Encoraja idéias que produzam serenidade ou alegria ­ e encontra meios de combater as idéias de outros tipos. Entende o bem, o estado de bondade, como algo que promove a saúde. A oração não está inclusa, e nem o asceticismo. Não há um imperativo categórico ou qualquer disciplina, mesmo dentro dos monastérios (­ dos quais é sempre permitido sair ­). Todas essas coisas seriam simplesmente meios para aumentar aquela excessiva sensibilidade supramencionada. Pelo mesmo motivo não advoga qualquer conflito contra os incrédulos; seus ensinamentos não antagonizam nada senão a vingança, a aversão, o ressentimento (­ "inimizade nunca põe fim à inimizade": o refrão que move o budismo...) E nisso tudo estava correto, pois são precisamente essas paixões que, na perspectiva de seu principal objetivo regimental, são insalubres. A fadiga mental que apresenta, já claramente evidenciada pelo excesso de "objetividade" (isto é, a perda do interesse em si mesmo, a perda do equilíbrio e do "egoísmo"), é combatida por vigorosos esforços a fim de levar os interesses espirituais de volta ao ego. Nos ensinamentos de Buda o egoísmo é um dever. A "única coisa necessária", a questão "como posso me libertar do sofrimento", é o que rege e determina toda a dieta espiritual (­ talvez alguém lembrar-se-á daquele ateniense que também declarou guerra ao "cientificismo" puro, a saber, Sócrates, que também elevou o egoísmo à condição de princípio moral).