O Anticristo - XXXI

XXXI

Antecipadamente dei minha resposta ao problema. Seu pré-requisito é a assunção de que o tipo do Salvador chegou até nós com sua forma altamente distorcida. Tal distorção é muito provável: há muitos motivos para que esse tipo não deva ser transmitido em sua forma pura, completa e livre de acréscimos. O ambiente no qual esta estranha figura se movia deve ter deixado vestígios nela, e ainda mais deve ter sido feito pela história, pelo destino das primeiras comunidades cristãs; a última, de fato, deve ter embelezado o tipo retrospectivamente com caracteres que apenas podem ser compreendidos enquanto finalidades de guerra e propaganda. Aquele mundo estranho e doentio ao qual os Evangelhos nos conduzem ­ um mundo aparentemente vindo de uma novela russa, no qual a escória da sociedade, as moléstias nervosas e a idiotice "pueril" se reúnem ­ deve, de qualquer modo, ter tornado o tipo grosseiro: os primeiros discípulos, em particular, devem ter sido forçados a traduzir, com sua crueza própria, um ser totalmente formado por símbolos e coisas ininteligíveis para poderem compreender alguma coisa ­ na visão deles o tipo apenas existiu após ter sido reformado em moldes mais familiares... O profeta, o messias, o futuro juiz, o professor de moral, o milagreiro, João Batista ­ todas simplesmente chances de desfigurá-lo... Finalmente, não subestimemos o proprium de todas as grandes venerações, especialmente as sectárias: tendem a apagar dos objetos venerados todas as características originais e idiossincrasias, não raro dolorosamente estranhas ­ nem mesmo os vê. Deve-se lamentar muito que nenhum Dostoievski tenha vivido nas vizinhanças do mais interessante dos décadents ­ ou seja, alguém que teria sentido o comovente encanto de tal mistura do sublime, do mórbido e do infantil. Em última análise, o tipo, enquanto tipo da decadência, talvez possa realmente ter sido peculiarmente complexo e contraditório: não se deve excluir essa possibilidade. Contudo, as probabilidades parecem estar em seu desfavor, pois neste caso a tradição teria sido particularmente precisa e objetiva, enquanto temos razões para admitir o contrário. Entretanto, existe uma contradição entre o pacífico pregador das montanhas, dos lagos e dos campos, que parece como um novo Buda em um solo muito pouco indiano, e o fanático agressivo, o inimigo mortal dos teólogos e dos eclesiásticos, que é glorificado pela malícia de Renan como "lê grand maitre em ironie". Pessoalmente não tenho qualquer dúvida de que a maior parte desse veneno (e não menos de esprit) haja penetrado no tipo do Mestre apenas como um resultado da agitada natureza da propaganda cristã: todos conhecemos a inescrupulosidade dos sectários quando decidem fazer de seu líder uma apologia para si mesmos. Quando os primeiros cristãos precisaram de um teólogo hábil, contencioso, pugnaz e maliciosamente sutil para enfrentar outros teólogos, criaram um "Deus" para satisfazer tal necessidade, exatamente como também, sem hesitação, colocaram em sua boca certas idéias que eram necessárias a eles, mas totalmente divergentes dos Evangelhos ­ "a volta de Cristo", "o juízo final", todos os tipos de expectativas e promessas temporais. ­