O Anticristo - LXIII

LXIII

Quando centro de gravidade da vida é colocado, não nela mesma, mas no "além" ­ no nada ­, então se retirou da vida o seu centro de gravidade. A grande mentira da imortalidade pessoal destrói toda razão, todo instinto natural ­ tudo que há nos instintos que seja benéfico, vivificante, que assegure o futuro, agora é causa de desconfiança. Viver de modo que a vida não tenha sentido: agora esse é o "sentido" da vida... Para que o espírito público? Para que se orgulhar pela origem e antepassados? Para que cooperar, confiar, preocupar-se com o bem-estar geral e servir a ele?... Outras tantas "tentações", outros tantos desvios do "bom caminho". ­ "Somente uma coisa é necessária"... Que todo homem, por possuir uma "alma imortal", tenha tanto valor quanto qualquer outro homem; que na totalidade dos seres a "salvação" de todo indivíduo um possa reivindicar uma importância eterna; que beatos insignificantes e desequilibrados possam imaginar que as leis da natureza são constantemente transgredidas em seu favor ­ não há como expressar desprezo suficiente por tamanha intensificação de toda espécie de egoísmos ad infinitum, até a insolência. E, contudo, o cristianismo deve o seu triunfo precisamente a essa deplorável bajulação de vaidade pessoal ­ foi assim que seduziu ao seu lado todos os malogrados, os insatisfeitos, os vencidos, todo o refugo e vômito da humanidade. A "salvação da alma" ­ em outras palavras: "o mundo gira ao meu redor"... A venenosa doutrina dos "direitos iguais para todos" foi propagada como um princípio cristão: a partir dos recônditos mais secretos dos maus instintos o cristianismo travou uma guerra de morte contra todos os sentimentos de reverência e distância entre os homens, ou seja, contra o primeiro pré-requisito de toda evolução, de todo desenvolvimento da civilização ­ do ressentimento das massas forjou sua principal arma contra nós, contra tudo que é nobre, alegre, magnânimo sobre a terra, contra nossa felicidade na Terra... Conceder a "imortalidade" a qualquer Pedro e Paulo foi a maior e mais viciosa afronta à humanidade nobre já perpetrada. ­ E não subestimemos a funesta influência que o cristianismo exerceu mesmo na política! Atualmente ninguém mais possui coragem para os privilégios, para o direito de dominar, para os sentimentos de veneração por si e seus iguais ­ para o pathos da distância... Nossa política está debilitada por essa falta de coragem! ­ Os sentimentos aristocráticos foram subterraneamente carcomidos pela mentira da igualdade das almas; e se a crença nos "privilégios da maioria" faz e continuará a fazer revoluções ­ é o cristianismo, não duvidemos disso, são as valorações cristãs que convertem toda revolução em um carnaval de sangue e crime! O cristianismo é uma revolta de todas as criaturas rastejantes contra tudo que é elevado: o Evangelho dos "baixos" rebaixa...

O Anticristo - XLIV

XLIV

­ Os Evangelhos são inestimáveis como evidência da corrupção já arraigada dentro da comunidade cristã primitiva. O que Paulo, com a cínica lógica de um rabino, posteriormente levou a cabo era no fundo apenas um processo de degradação que se iniciou com a morte do Salvador. ­ Nenhum esmero é demais na leitura dos Evangelhos; dificuldades se ocultam por detrás de cada palavra. Eu confesso ­ espero que ninguém me leve a mal ­ que precisamente por essa razão oferecem um deleite de primeira ordem a um psicólogo ­ como o oposto de toda corrupção ingênua, como um refinamento par excellence, como uma arte da corrupção psicológica. Os Evangelhos, de fato, estão à parte. A Bíblia em geral não deve ser comparada a eles. Estamos entre judeus: essa é a primeira coisa que devemos ter em mente se não quisermos perder o fio do assunto. A genialidade empregada para criar a ilusão de "santidade" pessoal permanece sem paralelos, tanto nos livros quanto nos homens; essa elevação da falsidade na palavra e nos gestos ao nível de arte ­ isso tudo não se deve ao acaso de um talento individual, de alguma natureza excepcional. O necessário aqui é a raça. Todo o judaísmo manifesta-se no cristianismo como a arte de forjar mentiras sagradas, como a técnica judaica que após muitos séculos de aprendizado e treinamento sério chegou à sua mais alta maestria. O cristão, essa ultima ratio da mentira, é o judeu mais uma vez ­ é triplicemente judeu... A vontade subjacente de utilizar somente conceitos, símbolos e atitudes que convém à práxis sacerdotal, o repúdio instintivo a qualquer outra perspectiva e a qualquer outro método para estimar valor e utilidade ­ isso não é somente uma tradição, é uma herança: apenas como uma herança é capaz de operar com força natural. Toda a humanidade, mesmo as maiores mentes das maiores épocas (com uma exceção que, talvez, mal fosse humana ­), deixou-se enganar. O Evangelho foi lido como um livro da inocência... certamente nenhuma modesta indicação do alto grau de perícia com que o truque foi feito. ­ É claro, se pudéssemos de fato ver esses carolas e santos falsos, mesmo que apenas por um instante, a farsa seria posta a fim ­ e precisamente porque não consigo ler suas palavras sem também ver seus gestos que acabei com eles... Simplesmente não consigo suportar a maneira com que levantam os olhos. ­ Para a maioria, felizmente, livros não passam de literatura. ­ Que não nos deixemos induzir em erro: eles dizem "não julgueis", mas condenam ao inferno tudo que fica em seu caminho. Ao deixarem Deus julgar, são eles próprios que julgam; ao glorificarem Deus, glorificam a si mesmos; ao exigirem que todos manifestem as virtudes para as quais são aptos ­ mais ainda, das quais precisam para permanecer no topo ­, assumem o aspecto de homens em uma luta pela virtude, de homens engajados numa guerra para que a virtude prevaleça. "Nós vivemos, morremos, sacrificamo-nos pelo bem" (­ "a verdade", "a luz", "o reino de Deus"): na realidade, simplesmente fazem o que não podem deixar de fazer. Forçados, como hipócritas, a serem furtivos, se esconderem nos cantos, se esquivarem pelas sombras, convertem sua necessidade em dever: é como um dever que surge sua vida humilde, e tal humildade converte-se em mais uma prova de devoção... Ah, essa humilde, casta e misericordiosa fraude! "A própria virtude deve testemunhar em nosso favor"... Leiam-se os Evangelhos como livros de sedução moral: essa gentinha insignificante se atrela à moral ­ conhecem perfeitamente suas utilidades! A moral é o melhor meio para conduzir a humanidade pelo nariz! ­ A verdade é que a mais consciente presunção dos eleitos disfarça-se de modéstia: desse modo colocaram a si próprios, a "comunidade", os "bons e justos", de uma vez por todas, de um lado, do lado da "verdade" ­ e o resto da humanidade, "o mundo", do outro... Nisto observamos a espécie mais fatal de megalomania que a Terra já testemunhou: pequenos abortos de beatos e mentirosos começam a reivindicar direitos exclusivos sobre os conceitos de "Deus", "verdade", "luz", "espírito", "amor", "sabedoria", "vida", como se fossem sinônimos deles próprios, e através disso buscaram estabelecer o limite entre si e o "mundo"; pequenos superjudeus, maduros para todo tipo de manicômio, viraram os valores de cabeça para baixo para satisfazerem suas noções, como se somente o cristão fosse o significado, o sal, a medida e também o juízo final de todo o resto... Todo esse desastre só foi possível porque no mundo já existia uma megalomania similar, de mesma raça, a saber, a judaica: uma vez que se abriu o abismo entre judeus e judeus-cristãos, a estes já não havia escolha senão empregar os mesmos procedimentos de autoconservação que o instinto judaico lhes aconselhava, mesmo contra os próprios judeus, ainda que judeus somente os tivessem empregado contra não-judeus. O cristão é simplesmente um judeu de confissão "reformada". ­

O Anticristo - XLV

XLV ­ Ofereço alguns exemplos do tipo de coisa que essa gente insignificante tinha dentro de suas cabeças ­ do que colocaram na boca do Mestre: a cândida crença de "belas almas". ­

"E tantos quantos vos não receberem, nem vos ouvirem, saindo dali, sacudi o pó que estiver debaixo dos vossos pés, em testemunho contra eles. Em verdade vos digo que haverá mais tolerância no dia do juízo para Sodoma e Gomorra, do que para os daquela cidade" (Marcos, 6:11). ­ Quão evangélico!

"E qualquer que escandalizar um destes pequeninos que crêem em mim, melhor lhe fora que lhe pusessem ao pescoço uma mó de atafona, e que fosse lançado no mar" (Marcos, 9:42). ­ Quão evangélico!

"E, se o teu olho te escandalizar, lança-o fora; melhor é para ti entrares no reino de Deus com um só olho do que, tendo dois olhos, seres lançado no fogo do inferno, onde o seu bicho não morre, e o fogo nunca se apaga" (Marcos, 9:47-48). ­ Não é exatamente do olho que se trata...

"Dizia-lhes também: Em verdade vos digo que, dos que aqui estão, alguns há que não provarão a morte sem que vejam chegado o reino de Deus com poder" (Marcos 9:1). ­ Bem mentido, leão!...

"Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, e tome a sua cruz, e siga-me. Porque..." (Nota de um psicólogo: a moral cristã é refutada pelos seus porquês: suas razões a contrariam ­ isso a faz cristã) (Marcos, 8:34). ­

"Não julgueis, para que não sejais julgados ...com a medida com que tiverdes medido vos hão de medir a vós" (Mateus 7:1-2). ­ Que noção de justiça, que juiz "justo"!...

"Pois, se amardes os que vos amam, que galardão tereis? Não fazem os publicanos também o mesmo? E, se saudardes unicamente os vossos irmãos, que fazeis de mais? Não fazem os publicanos também assim?" (Mateus 5:46-47). ­ Princípio do "amor cristão": no fim das contas quer ser bem pago...

"Se, porém, não perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai vos não perdoará as vossas ofensas" (Mateus 6:15). ­ Muito comprometedor para o assim chamado "pai".

"Mas, buscai primeiro o reino de Deus, e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas" (Mateus 6:33). ­ Todas estas coisas: isto é, alimento, vestuário, todas necessidades da vida. Um erro, para ser eufêmico... Um pouco antes esse Deus apareceu como um alfaiate, pelo menos em certos casos.

"Folgai nesse dia, exultai; porque eis que é grande o vosso galardão no céu, pois assim faziam os seus pais aos profetas" (Lucas 6:23). ­ Canalha indecente! Já se compara aos profetas...

"Não sabeis vós que sois o templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós? Se alguém violar o templo de Deus, Deus o destruirá; porque o templo de Deus, que sois vós, é santo" (I Paulo aos coríntios, 3:16-17). ­ Para coisas assim não há desprezo suficiente...

"Não sabeis vós que os santos hão de julgar o mundo? Ora, se o mundo deve ser julgado por vós, sois porventura indignos de julgar as coisas mínimas?" (I Paulo aos coríntios, 6:2). ­ Infelizmente, não é apenas o discurso de um lunático... Esse espantoso impostor assim prossegue: "Não sabeis vós que havemos de julgar os anjos? Quanto mais as coisas pertencentes a esta vida?"...

"Porventura não tornou Deus louca a sabedoria deste mundo? Visto como na sabedoria de Deus o mundo não conheceu a Deus pela sua sabedoria, aprouve a Deus salvar os crentes pela loucura da pregação... Não são muitos os sábios segundo a carne, nem muitos os poderosos, nem muitos os nobres que são chamados. Mas Deus escolheu as coisas loucas deste mundo para confundir as sábias; e Deus escolheu as coisas fracas deste mundo para confundir as fortes; e Deus escolheu as coisas vis deste mundo, e as desprezíveis, e as que nada são, para aniquilar as que são; para que nenhuma carne se glorie perante ele" (I Paulo aos coríntios, 1:20 e adiante). ­ Para compreender esta passagem, um exemplo de primeira linha da psicologia da moral de chandala, deve-se ler a primeira parte de minha "Genealogia da Moral": nela, pela primeira vez, foi evidenciado o antagonismo entre a moral nobre e a moral de chandala, nascida do ressentimento e da vingança impotente. Paulo foi o maior dos apóstolos da vingança...

O Anticristo - XLVI

XLVI

­ Que se infere disso? Que convém vestir luvas antes de ler o Novo Testamento. A presença de tanta sujeira faz disso algo muito aconselhável. Tão pouco escolheríamos como companheiros os "primeiros cristãos" quanto os judeus poloneses: não que tenhamos a necessidade de lhes fazer objeções... Ambos cheiram mal. ­ Em vão procurei no Novo Testamento por um único traço de simpatia; nele não há nada que seja livre, bondoso, sincero ou leal. Nele a humanidade nem mesmo dá seu primeiro passo ascendente ­ o instinto de limpeza está ausente... Apenas maus instintos estão presentes, e tais instintos nem ao menos são dotados de coragem. Nele tudo é covardia; tudo é um fechar os olhos, um auto-engano. Após ler o Novo Testamento qualquer outro livro parece limpo: por exemplo, imediatamente após Paulo, li com arrebatamento o mais encantador e insolente zombeteiro, Petrônio, do qual poder-se-ia dizer o mesmo que Domenico Boccaccio escreveu sobre César Bórgia ao Duque de Parma: "é tutto festo" ­ imortalmente saudável, imortalmente alegre e são... Estes santarrões miseráveis erram no essencial. Atacam, mas tudo que atacam torna-se distinto. Quem é atacado por um "primeiro cristão" certamente não é denegrido... Pelo contrário, é uma honra possuir um "primeiro cristão" como oponente. Não se pode ler o Novo Testamento sem adquirir uma predileção por tudo que nele é maltatrado ­ para não falar da "sabedoria deste mundo", que um insolente fanfarrão tenta reduzir a nada com a "loucura da pregação"... Mesmo os escribas e fariseus são beneficiados por tal oposição: certamente deviam ter algum valor para merecerem ser odiados de maneira tão indecente. Hipocrisia ­ como se essa fosse uma acusação que os "primeiros cristãos" ousassem fazer! ­ Afinal, eles eram os privilegiados, e isso era suficiente: o ódio dos chandala não precisa de qualquer outro pretexto. O "primeiro cristão" ­ e também, receio, o "último cristão", que eu talvez viva tempo suficiente para ver ­ é um rebelde por profundo instinto contra tudo que é privilégio ­ vive e guerreia sempre pela "igualdade de direitos"... Estritamente falando, ele não tem escolha. Quando alguém pretende representar, ele próprio, o "eleito de Deus" ­ ou "templo de Deus", ou "juiz dos anjos" ­, então qualquer outro critério de eleição, quer seja baseado na honestidade, no intelecto, na virilidade e no orgulho, ou na beleza e liberdade de coração, torna-se simplesmente "mundano" ­ o mal em si... Moral: toda palavra pronunciada por um "primeiro cristão" é uma mentira, todos seus atos são instintivamente desonestos ­ todos seus valores, todos seus fins são nocivos, mas todos que odeia, tudo que odeia, tem valor verdadeiro... O cristão, e particularmente o padre cristão, é um critério de valores.

­ Preciso acrescentar que, em todo o Novo Testamento, não aparece senão uma única figura merecedora de honra: Pilatos, o governador romano. Levar assuntos judaicos a sério ­ ele estava muito acima disso. Um judeu a mais ou a menos ­ que isso importa?... A nobre ironia do romano ante o qual a palavra "verdade" foi cinicamente abusada enriqueceu o Novo Testamento com a única passagem que tem qualquer valor ­ que é sua crítica e sua destruição: "Que é a verdade?"...

O Anticristo - XLVII

XLVII

­ O que nos distingue não é nossa incapacidade de encontrar Deus, nem na história, nem na natureza, nem por detrás da natureza ­ mas que consideramos tudo que foi honrado como sendo Deus, não como algo "divino", mas lastimável, absurdo, nocivo; não como um simples erro, mas como um crime contra a vida... Negamos que esse Deus seja Deus... E se alguém nos mostrasse esse Deus cristão, ficaríamos ainda menos inclinamos a crer nele. ­ Numa fórmula: Deus, qualem Paulus creavit, Dei negatio. ­ Uma religião como o cristianismo, que não possui um único ponto de contato com a realidade, que se esfacela no momento em que a realidade impõe seus direitos, inevitavelmente será a inimiga mortal da "sabedoria deste mundo", ou seja, da ciência ­ nomeará bom tudo que serve para envenenar, caluniar e depreciar toda disciplina intelectual, toda lucidez e retidão em matéria de consciência intelectual, toda frieza nobre e liberdade de espírito. A "fé", como um imperativo, veta a ciência ­ in praxi, mentir a todo custo... Paulo compreendeu muito bem que a mentira ­ que a "fé" ­ era necessária; e posteriormente a Igreja compreendeu Paulo. ­ O Deus que Paulo inventou, um Deus que "reduz ao absurdo" a "sabedoria deste mundo" (especialmente as duas grandes inimigas da superstição, a filologia e a medicina), é em verdade uma indicação da firme determinação de Paulo para realizar isto: dar o nome de Deus à sua própria vontade, thora ­ isso é essencialmente judaico. Paulo quer desvalorizar a "sabedoria deste mundo": seus inimigos são os bons filólogos e médicos da escola alexandrina ­ a guerra é feita contra eles. De fato, nenhum homem pode ser filólogo e médico sem ao mesmo tempo ser anticristo. O filólogo vê por detrás dos "livros sagrados", o médico vê por detrás da degeneração fisiológica do cristão típico. O médico diz "incurável"; o filólogo diz "fraude"...

O Anticristo - XLVIII

XLVIII

­ Será que alguém já compreendeu claramente a célebre história que se encontra no início da Bíblia ­ a do pavor mortal de Deus ante a ciência? Ninguém, de fato, a compreendeu. Este livro de padres par excellence começa, como convém, com a grande dificuldade interior do padre: ele enfrenta um único grande perigo, ergo, "Deus" enfrenta um único grande perigo. ­

O velho Deus, todo "espírito", todo grão-padre, todo perfeição, passeia pelo seu jardim: está entediado e tentando matar tempo. Contra o enfado até os Deuses lutam em vão. O que ele faz? Cria o homem ­ o homem é divertido... Mas então percebe que o homem também está entediado. A piedade de Deus para a única forma da aflição presente em todos os paraísos desconhece limites: então em seguida criou outros animais. Primeiro erro de Deus: para o homem esses animais não representavam diversão ­ ele buscava dominá-los; não queria ser um "animal". ­ Então Deus criou a mulher. Com isso erradicou enfado ­ e muitas outras coisas também! A mulher foi o segundo erro de Deus. ­ "A mulher, por natureza, é uma serpente: Eva" ­ todo padre sabe disso; "da mulher vem todo o mal do mundo" ­ todo padre sabe disso também. Logo, igualmente cabe a ela a culpa pela ciência... Foi devido à mulher que o homem provou da árvore do conhecimento. ­ Que sucedeu? O velho Deus foi acometido por um pavor mortal. O próprio homem havia sido seu maior erro; criou para si um rival; a ciência torna os homens divinos ­ tudo se arruína para padres e deuses quando o homem torna-se científico! ­ Moral: a ciência é proibida per se; somente ela é proibida. A ciência é o primeiro dos pecados, o germe de todos os pecados, o pecado original. Toda a moral é apenas isto: "Tu não conhecerás" ­ o resto deduz-se disso. ­ O pavor de Deus, entretanto, não o impediu de ser astuto. Como se proteger contra a ciência? Por longo tempo esse foi o problema capital. Resposta: expulsando o homem do paraíso! A felicidade e a ociosidade evocam o pensar ­ e todos pensamentos são maus pensamentos! ­ O homem não deve pensar. ­ Então o "padre" inventa a angústia, a morte, os perigos mortais do parto, toda a espécie de misérias, a decrepitude e, acima de tudo, a enfermidade ­ nada senão armas para alimentar a guerra contra a ciência! Os problemas não permitem que o homem pense... Apesar disso ­ que terrível! ­ o edifício do conhecimento começa a elevar-se, invadindo os céus, obscurecendo os Deuses ­ que fazer? ­ O velho Deus inventa a guerra; separa os povos; faz com que se destruam uns aos outros (­ os padres sempre necessitaram de guerras...). Guerra ­ entre outras coisas, um grande estorvo à ciência! ­ Inacreditável! O conhecimento, a emancipação do domínio sacerdotal prosperam apesar da guerra! ­ Então o velho Deus chega à sua resolução final: "O homem tornou-se científico ­ não existe outra solução: ele precisa ser afogado"...

O Anticristo - XLIX

XLIX

­ Fui compreendido. No início da Bíblia está toda a psicologia do padre. ­ O padre conhece apenas um grande perigo: a ciência ­ o conceito sadio de causa e efeito. Mas a ciência apenas floresce totalmente sob condições favoráveis ­ um homem precisa de tempo, precisa possuir um intelecto transbordante para poder "conhecer"... "Logo, é preciso tornar o homem infeliz" ­ essa foi, em todas as épocas, a lógica do padre. ­ É fácil ver o que, a partir dessa lógica, surgiu no mundo: ­ o "pecado"... O conceito de culpa e punição, toda a "ordem moral do mundo" foram direcionados contra a ciência ­ contra a emancipação do homem do jugo sacerdotal... O homem não deve olhar para seu exterior; deve olhar apenas para o interior. Não deve olhar as coisas com acuidade e prudência, não deve aprender sobre elas; não deve olhar para nada; deve apenas sofrer... E sofrer tanto que sempre esteja precisando de um padre. ­ Fora os médicos! O necessário é um Salvador. ­ O conceito de culpa e punição, incluindo as doutrinas da "graça", da "salvação", do "perdão" ­ mentiras sem qualquer realidade psicológica ­ foram inventadas para destruir o senso de causalidade do homem: são um ataque contra o conceito de causa e efeito! ­ E não um ataque com punho, com faca, com honestidade no amor e no ódio! Longe disso, foi inspirado pelo mais covarde, mais velhaco, mais ignóbil dos instintos! Um ataque de padres! Um ataque de parasitas! O vampirismo de sanguessugas pálidas e subterrâneas!... Quando as conseqüências naturais de um ato já não são mais "naturais", mas vistas como obras de fantasmas da superstição ­ "Deus", "espíritos", "almas" ­, como conseqüências "morais", recompensas, punições, sinais, lições, então torna-se estéril todo o solo para o conhecimento ­ e com isso perpetrou-se o maior dos crimes contra a humanidade. ­ Repito que o pecado, essa autoprofanação par excellence, foi inventado para tornar impossível ao homem a ciência, a cultura, toda a elevação e todo o enobrecimento; o padre reina graças à invenção do pecado. ­

O Anticristo - L

L

­ Não posso, aqui, prescindir de uma psicologia da "fé", do "crente", em proveito, como é justo, dos próprios "crentes". Se hoje há alguns que ainda não sabem quão indecente é ser "crente" ­ ou quanto isso indica decadência, falta de vontade de viver ­, amanhã eles o saberão. Minha voz alcança até os surdos. ­ Parece-me que entre cristãos, se não compreendi mal, prevalece uma espécie de critério da verdade chamado "prova de força". A fé beatifica: logo, é verdadeira". ­ Poderia-se objetar que a beatitude não é demonstrada, mas apenas prometida: sustenta-se na "fé" enquanto condição ­ será beatificado porque crê... Mas e aquilo que o padre promete ao crente, aquele "além" transcendental ­ como isso pode ser demonstrado? ­ A "prova de força", no fundo, não passa da crença de que os efeitos prometidos pela fé se realizarão. ­ Numa fórmula: "Creio que a fé beatifica ­ logo, ela é verdadeira"... Mas não podemos ir além disso. Esse "logo" já é o próprio absurdum transformado em critério da verdade. ­ Contudo, por cortesia, admitamos que a beatificação através da fé tenha sido demonstrada (­ não meramente desejada, não meramente prometida pela suspeita boca de um padre): mesmo assim, poderia a beatitude ­ dito em forma técnica, o prazer ­ ser uma prova da verdade? Dista tanto de sê-lo que a influência das sensações de prazer sobre a resposta à questão "Que é a verdade?" praticamente constitui uma objeção à verdade, ou, em todo caso, é suficiente para torná-la altamente suspeita. A prova do "prazer" prova o "prazer" ­ nada mais; por que se deveria admitir que juízos verdadeiros geram mais prazer que os falsos e que, em conformidade a alguma harmonia preestabelecida, necessariamente trariam consigo sensações de prazer? ­ A experiência de todas as mentes profundas e disciplinadas ensina o contrário. O homem teve de lutar bravamente por cada migalha da verdade; teve de sacrificar quase tudo aquilo em que se agarra o coração humano, o amor humano, a confiança humana na vida. Para isso é necessário possuir grandeza de alma: o serviço da verdade é o mais duro dos serviços. ­ O que significa, então, a integridade intelectual? Significa ser severo com seu próprio coração, desprezar os "belos sentimentos" e fazer de cada Sim e de cada Não uma questão de consciência! ­ A fé beatifica: logo, ela mente...

O Anticristo - LI

LI

Que em certas circunstâncias a fé promove a bem-aventurança, que a bem-aventurança não faz de uma idee fixe uma idéia verdadeira, que a fé na realidade não move montanhas, mas as constrói onde antes não existiam: tudo isso fica bastante evidente após uma breve visita a um hospício. Mas não, é claro, para um padre: pois seus instintos o induzem a dizer que a doença não é doença e que hospícios não são hospícios. O cristianismo necessita da doença, assim como o espírito grego necessitava de uma saúde superabundante ­ o verdadeiro objetivo de todo o sistema de salvação da Igreja é tornar as pessoas enfermas. E a própria Igreja ­ não considera ela um manicômio católico como o ideal último? ­ Toda a Terra, um manicômio? ­ O tipo de homem religioso que a Igreja deseja é o típico decadente; a época em que uma crise religiosa se apodera de um povo é sempre marcada por epidemias de desordem nervosa; o "mundo interior" de um homem religioso assemelha-se tanto ao "mundo interior" de um homem sobreexcitado e exausto que é difícil distinguir entre os dois; os estados mais "elevados", que o cristianismo colocou sobre a humanidade como valores supremos, são formas epileptóides ­ a Igreja concedeu nomes sagrados apenas para lunáticos ou grandes impostores in majorem Dei honorem... Uma vez me aventurei a considerar todo o sistema cristão de training em penitência e salvação (atualmente melhor estudado na Inglaterra) como um método para produzir uma folie circulaire sobre um solo já preparado, ou seja, um solo absolutamente insalubre. Nem todos podem ser cristãos: não se é "convertido" ao cristianismo ­ antes é necessário estar suficientemente doente... Nós outros, nós que temos coragem para a saúde e para o desprezo ­ temos o direito de desprezar uma religião que prega a incompreensão do corpo! Que se recusa a dispensar a superstição da alma! Que da insuficiência alimentar faz "virtude"! Que combate a saúde como alguma espécie de inimigo, de demônio, de tentação! Que se convenceu de que é possível trazer uma "alma perfeita" em um corpo cadavérico, e que, para isso, inventou um novo conceito de "perfeição", um estado existencial pálido, doentio, fanático até a estupidez, a chamada "santidade" ­ uma santidade que não passa de uma série de sintomas de um corpo empobrecido, enervado e incuravelmente corrompido!... O movimento cristão, enquanto movimento Europeu, desde o começo não foi mais que uma sublevação de toda espécie de elementos desterrados e refugados (­ que agora, sob a máscara do cristianismo, aspiram ao poder). ­ Não representa a degeneração de uma raça; representa, pelo contrário, uma conglomeração de produtos da decadência vindos de todas as direções, amontoando-se e buscando-se reciprocamente. Não foi, como se pensa, a corrupção da Antigüidade, da Antigüidade nobre, que tornou o cristianismo possível; nunca será possível combater com violência suficiente a imbecilidade erudita que atualmente sustém tal teoria. Quando as enfermas e podres classes chandala de todo o imperium foram cristianizadas, o tipo oposto, a nobreza, alcançou seu estágio de desenvolvimento mais belo e amadurecido. A maioria subiu ao poder; a democracia, com seus instintos cristãos, triunfou... O cristianismo não era "nacional", não estava baseado em raça ­ apelou a todas as variedades de homens deserdados pela vida, tinha aliados em toda parte. O cristianismo possui em seu âmago o rancor dos doentes ­ o instinto contra os sãos, contra a saúde. Tudo que é bem-constituído, orgulhoso, galante e, acima de tudo, belo é uma ofensa aos seus olhos e ouvidos. Novamente recordo as inestimáveis palavras de Paulo: "Deus escolheu as coisas fracas deste mundo, as coisas loucas deste mundo, as coisas ignóbeis e as desprezadas": essa era a fórmula; in hoc signo a décadence triunfou. ­ Deus na cruz ­ o homem nunca compreenderá o assustador significado que esse símbolo encerra? ­ Tudo que sofre, tudo que está crucificado é divino... Nós todos estamos suspensos na cruz, conseqüentemente somos divinos... Apenas nós somos divinos!... Neste sentido o cristianismo foi uma vitória: uma mentalidade mais nobre pereceu por ele ­ o cristianismo continua sendo a maior desgraça da humanidade. ­

O Anticristo - LII

LII

O cristianismo também se encontra em oposição a toda boa constituição intelectual ­ somente a razão enferma pode ser usada como razão cristã; toma o partido de tudo que é idiota; lança sua maldição contra o "intelecto", contra a soberba do intelecto são. Visto que a doença é inerente ao cristianismo, segue-se disso que o estado típico do cristão, "a fé", também é necessariamente uma forma de doença; todos os caminhos retos, legítimos e científicos devem ser banidos pela Igreja como sendo caminhos proibidos. A própria dúvida é um pecado... A completa ausência de limpeza psicológica no padre ­ identificada por um simples olhar ­ é um fenômeno resultante da decadência ­ observando-se mulheres histéricas e crianças raquíticas notar-se-á regularmente que a falsificação dos instintos, o prazer de mentir por mentir e a incapacidade de olhar e caminhar direito são sintomas da decadência. "Fé" significa não querer saber o que é a verdade. O padre, o devoto de ambos os sexos, é uma fraude porque é doente: seus instintos exigem que a verdade jamais tenha direito em qualquer ponto. "Tudo que torna doente é bom; tudo que surge da plenitude, da superabundância, do poder, é mau": assim pensa o crente. Uma compulsão para mentir ­ é através disso que reconheço todo teólogo predestinado. ­ Outra característica do teólogo é sua incapacidade filológica. O que quero dizer com filologia é, de modo geral, a arte de ler bem ­ a capacidade de absorver fatos sem interpretá-los falsamente, sem perder, na ânsia de compreendê-los, a cautela, a paciência e a sutileza. Filologia como ephexis na interpretação: trate-se de livros, de notícias de jornal, dos mais funestos eventos ou de estatísticas meteorológicas ­ para não mencionar a "salvação da alma"... A maneira como um teólogo, seja de Berlim ou Roma, explica, digamos, uma "passagem bíblica", ou um acontecimento, por exemplo, a vitória do exército nacional, sob a sublime luz dos Salmos de Davi, é sempre tão ousada que faz um filólogo subir pelas paredes. E o que dizer quando devotos e outras vacas da Suábia usam o "dedo de Deus" para converter sua miserável existência cotidiana e sedentária em um milagre da "graça", da "providência", em uma "experiência divina"? O mais modesto exercício de intelecto, para não dizer de decência, deveria de certo ser suficiente para convencer esses intérpretes da perfeita infantilidade e indignidade de tal abuso da destreza digital de Deus. Apesar de sermos poucos compassivos, caso encontrássemos um Deus que curasse oportunamente um constipado, ou que nos colocasse em uma carruagem no instante em que começasse a chover, ele nos pareceria um Deus tão absurdo que, mesmo existindo, teríamos de aboli-lo. Deus como empregado doméstico, como carteiro, como mensageiro ­ no fundo, Deus é simplesmente um nome dado para a mais imbecil espécie de acaso... A "Divina Providência", na qual terça parte da "Alemanha culta" ainda acredita, é um argumento tão forte contra Deus que em vão se procuraria por um melhor. E em todo caso é um argumento contra os alemães!...

O Anticristo - LIII

LIII

­ É tão pouco verdadeiro que mártires oferecem qualquer verossimilhança a uma causa que me sinto inclinado a negar que qualquer mártir já teve alguma coisa a ver com a verdade. No tom com que um mártir lança sua convicção à cara do mundo revela-se um grau tão baixo de probidade intelectual, tamanha insensibilidade ao problema da "verdade", que nunca chega a ser necessário refutá-lo. A verdade não é algo que alguns homens têm e outros não: na melhor das hipóteses, só há camponeses e apóstolos de camponeses, da classe de Lutero, que possam pensar assim da verdade. Pode-se ter certeza de que, quanto maior for o grau de consciência intelectual de um homem, maior será sua modéstia, sua discrição neste ponto. Ser competente em cinco ou seis coisas e se recusar, com delicadeza, a saber algo mais... O entendimento que todos profetas, sectários, livres-pensadores, socialistas e homens de igreja têm da palavra "verdade" é simplesmente uma prova cabal de que nem sequer foi dado o primeiro passo em direção à disciplina intelectual e ao autocontrole necessários à descoberta da menor das verdades. ­ Os mártires, diga-se de passagem, foram uma grande desgraça na história: seduziram... A conclusão a que todos idiotas, mulheres e plebeus chegam é que deve haver algum valor em uma causa pela qual alguém afronta a morte (ou que, como o cristianismo primitivo, engendra uma epidemia de gente à procura da morte) ­ essa conclusão impede o exame os fatos, tolhe por inteiro o espírito investigativo e circunspeto. Os mártires danificaram a verdade... Mesmo hoje, basta uma certa dose de crueldade na perseguição para proporcionar uma honrável reputação ao mais vazio tipo de sectarismo. ­ Como? O valor de uma causa é alterado pelo fato alguém ter se sacrificado por ela? ­ Um erro que se torna honroso é simplesmente um erro que possui um encanto sedutor: julgais, senhores teólogos, que vos daremos a chance de serdes martirizados por vossas mentiras? ­ Melhor se refuta uma causa colocando-a, respeitosamente, no gelo ­ esse também é o melhor meio para refutar os teólogos... Foi precisamente esta a estupidez histórico-mundial de todos os perseguidores: deram uma aparência honrosa à causa a que se opuseram ­ deram-lhe de presente a fascinação do martírio... Mulheres ainda se ajoelham ante um erro porque lhes disseram que um indivíduo morreu na cruz por ele. A cruz, então, é um argumento? ­ Mas sobre todas essas coisas um, e somente um, disse aquilo de que há milhares de anos se tinha necessidade ­ Zaratustra:

Traçaram sinais de sangue pelo caminho que percorreram, e sua loucura ensinava que a verdade se prova através do sangue.

Mas o sangue é, de todas, a pior testemunha da verdade; sangue envenena até a doutrina mais pura e a converte em insânia e ódio do coração.

E quando alguém atravessa o fogo por sua doutrina ­ que isso prova? Mais vale, em verdade, que do nosso próprio incêndio venha a nossa doutrina!

O Anticristo - LIV

LIV

Não nos enganemos: grandes intelectos são céticos. Zaratustra é um cético. A força e a liberdade que surgem do vigor e da plenitude intelectual se manifestam através do ceticismo. Homens de convicção estática não são levados em consideração quando se pretende determinar o que é fundamental em matéria de valor e desvalor. Homens de convicção são prisioneiros. Não vêem longe o bastante, não vêem abaixo de si: para um homem poder falar de valor e desvalor é necessário que veja quinhentas convicções abaixo de si ­ atrás de si... Uma mente que aspira a algo grande, e que também deseja os meios para isso, é necessariamente cética. A liberdade de qualquer tipo de convicção constitui parte da força, da capacidade de possuir um ponto de vista independente... A grande paixão do cético, o fundamento e a potência do seu ser, é mais esclarecida e mais despótica que ele próprio, coloca toda sua inteligência a seu serviço; lhe torna inescrupuloso; lhe concede a coragem para empregar até meios ímpios; sob certas circunstâncias, lhe permite convicções. A convicção enquanto um meio: muito só pode ser alcançado por meio de uma convicção. A grande paixão usa, consome convicções, mas não se submete a elas ­ sabe-se a soberana. ­ Pelo contrário, a necessidade de fé, de uma coisa não subordinada ao sim e não, de carlylismo, se me permitem a expressão, é a necessidade da fraqueza. O homem de fé, o "crente" de toda espécie, é necessariamente dependente ­ tal homem é incapaz de colocar-se a si mesmo como objetivo, e tampouco é capaz determinar ele próprio seus objetivos. O "crente" não se pertence; apenas pode ser o meio para um fim; precisa ser consumido; precisa de alguém que o consuma. Seus instintos atribuem suprema honra à moral da despersonalização; tudo o persuade a abraçar essa moral: sua prudência, sua experiência, sua vaidade. Todo tipo de fé é em si mesma a expressão de uma despersonalização, de um alheamento de si... Após se ponderar sobre quão necessários à maioria são os regulamentos restringentes; sobre quão necessária é a opressão, ou, em um sentido mais elevado, a escravidão, para possibilitar o bem-estar ao homem de vontade fraca, e especialmente à mulher, então finalmente se compreende o significado da convicção e da "fé". Para o homem de convicção a fé representa sua espinha dorsal. Deixar de ver muitas coisas, não possuir imparcialidade alguma, ser sempre de um partido, estimar todos os valores com uma ótica severa e infalível ­ essas são as condições necessárias à existência desse tipo de homem. Mas isso faz deles antagonistas do homem veraz ­ da verdade... O crente não é livre pra responder à questão do "verdadeiro" e do "falso"; segundo os ditames de sua consciência: a integridade, neste ponto, seria sua própria ruína. A limitação patológica de sua ótica faz do homem convicto um fanático ­ Savonarola, Lutero, Rousseau, Robespierre, Saint-Simon ­ o tipo desses encontra-se em oposição ao espírito forte, emancipado. Mas as grandiosas atitudes desses intelectos doentes, desses epiléticos das idéias, exercem influência sobre as grandes massas ­ os fanáticos são pitorescos, e a humanidade prefere observar poses a ouvir razões...

O Anticristo - LV

LV

­ Um passo adiante na psicologia da convicção, da "fé". Agora já faz bastante tempo desde que propus a questão de talvez as convicções serem inimigas mais perigosas à verdade que as mentiras ("Humano, Demasiado Humano", Aforismo 483). Desta vez pretendo colocar a questão definitiva: existe, de modo geral, alguma diferença entre uma mentira e uma convicção? ­ Todo o mundo acredita que sim; mas no que esse mundo não acredita! ­ Toda convicção tem sua história, suas formas primitivas, seus estágios de tentativa e erro: somente se transforma em convicção após não ter sido, por um longo tempo, uma convicção, e, depois disso, por um tempo ainda mais longo, sofrivelmente uma convicção. Não poderia também haver a falsidade nessas formas embrionárias de convicção? ­ Às vezes apenas é necessária uma mudança de pessoas: o que era uma mentira para o pai torna-se uma convicção para o filho. ­ Chamo de mentira o recusar-se a ver uma coisa que se vê, recusar-se a ver algo como de fato é: se a mentira foi proferida perante testemunhas ou não, isso não possui relevância. A espécie mais comum de mentira é aquela com a qual nos enganamos a nós mesmos: mentir aos outros é algo relativamente raro. ­ Agora, este não querer ver o que se vê, este não querer ver como de fato é, praticamente constitui o primeiro requisito para todos que pertencem a alguma espécie de partido: o homem de partido inevitavelmente torna-se um mentiroso. Por exemplo, os historiadores alemães estão convictos de que Roma era sinônimo de despotismo e que os povos germânicos trouxeram o espírito da liberdade ao mundo: qual a diferença entre essa convicção e uma mentira? Pode alguém ainda se admirar de que todos os partidos, incluindo os historiadores alemães, instintivamente se sirvam de frases morais ­ que a moral quase deva sua sobrevivência ao fato de toda espécie de homem de partido necessitar dela a cada instante? ­ "Esta é nossa convicção: proclamamo-la perante todo o mundo; vivemos e morremos por ela ­ que sejam respeitados todos aqueles que possuem convicções!" ­ De fato, ouvi isso da boca dos anti-semitas. Pelo contrário, senhores! Mentir por princípio certamente não torna um anti-semita mais respeitável... Os padres, que possuem mais sutileza em tais questões, e que compreendem bem a objeção existente contra a idéia de convicção, ou seja, de uma mentira que se transforma em princípio porque serve a um propósito, tomaram emprestado dos judeus o artifício de introduzir nesses casos os conceitos "Deus", "vontade de Deus" e "revelação Divina". Kant, com seu imperativo categórico, também estava no mesmo caminho: isso era sua razão prática. Há questões relativas à verdade e à inverdade que o homem não pode decidir; todas as questões capitais, todos problemas capitais de valoração estão acima da razão humana... Conhecer os limites da razão ­ somente isso é filosofia genuína. Que finalidade teve a revelação divina ao homem? Deus faria algo supérfluo? O homem não pode descobrir por si mesmo o que é bom e o é ruim, então Deus lhe ensinou sua vontade... Moral: o padre não mente ­ não existe a questão da "verdade" ou da "inverdade" entre as coisas de que falam os padres. É impossível mentir a respeito de tais coisas, pois para mentir primeiramente seria necessário saber o que é verdade. Mas isso está além do que o homem pode saber; logo, o padre é simplesmente um porta-voz de Deus. ­ Tal silogismo de padre não é de modo algum somente judaico e cristão; o direito à mentira e à astuciosa evasiva da "revelação" pertence ao tipo do padre em geral ­ tanto aos padres da decadência quanto aos padres dos tempos pagãos (­ pagãos são todos aqueles que dizem sim à vida, e para os quais "Deus" é uma palavra que significa um sim a todas as coisas). ­ A "lei", a "vontade de Deus", o "livro sagrado", a "inspiração" ­ são todas palavras que designam as condições sob as quais o padre adquire e mantém o poder ­ esses conceitos se encontram no fundo de todas organizações sacerdotais, de todos governos eclesiásticos ou filosófico-eclesiásticos. A "santa mentira" ­ comum a Confúcio, ao código de Manu, a Maomé e à Igreja cristã ­ não falta em Platão. "A verdade está aqui": essas palavras significam, onde quer que sejam pronunciadas, o padre mente...

O Anticristo - LVI

LVI

­ Em última análise, chega-se a isto: qual a finalidade da mentira? O fato de que, no cristianismo, os fins "sagrados" não são visíveis é minha objeção aos seus meios. Só existem maus fins: o envenenamento, a calúnia, a negação da vida, o desprezo pelo corpo, a degradação e envilecimento do homem através do conceito de pecado ­ logo, seus meios também são maus. ­ Tenho o sentimento oposto quando leio o código de Manu, uma obra incomparavelmente mais intelectual e superior; seria um pecado contra a inteligência simplesmente nomeá-lo juntamente com a Bíblia. É fácil ver o porquê: há uma filosofia genuína por detrás dele, nele próprio, e não apenas uma mixórdia fétida de rabinismo judaico e superstição ­ oferece, mesmo aos psicólogos mais delicados, algo saboroso. E não nos esqueçamos do mais importante, ele difere fundamentalmente de toda espécie de Bíblia: através dele os nobres, os filósofos e guerreiros preservam o domínio sobre a maioria; está cheio de valores nobres, denota um sentimento de perfeição, de aceitação da vida, um ar triunfante em relação a si e à vida ­ o sol brilha sobre o livro todo. ­ Todas as coisas sobre as quais o cristianismo descarrega sua inexaurível vulgaridade ­ por exemplo, a procriação, as mulheres e o casamento ­ nele são tratadas seriamente, com respeito, amor e confiança. Como alguém pode colocar nas mãos de crianças e mulheres um livro contentor de palavras tão abjetas: "Para evitar a impudicícia, que cada homem tenha sua própria esposa e que cada mulher tenha seu próprio marido; ...pois é melhor casar-se que queimar-se"? E será possível ser um cristão enquanto a origem do homem estiver cristianizada, isto é, maculada pela doutrina da immaculata conceptio?... Não conheço qualquer outro livro em que sejam ditas tantas coisas boas e ternas sobre a mulher quanto no código de Manu; aqueles velhos e santos possuíam um modo tão amável de ser com as mulheres que talvez seja impossível superá-los. "A boca de uma mulher", diz um trecho, "o seio de uma donzela, a oração de uma criança e a fumaça de um sacrifício são sempre puros". Noutro trecho: "Não há nada mais puro que a luz do sol, a sombra de uma vaca, o ar, a água, o fogo e a respiração de uma donzela". Finalmente, esta última passagem ­ que talvez também seja uma mentira sagrada ­: "todos orifícios do corpo acima do umbigo são puros, todos os abaixo são impuros. Apenas na donzela o corpo todo é puro".

O Anticristo - LVII

LVII

Pega-se a irreligiosidade dos meios cristãos in flagranti simplesmente colocando os fins tencionados pelo cristianismo ao lado dos tencionados pelo código de Manu ­ pondo essas duas finalidades monstruosamente antitéticas sob uma forte luz. O crítico do cristianismo não pode evitar a necessidade de torná-lo desprezível. ­ O código de Manu tem a mesma origem que todo bom livro de leis: sumariza a prática, a sagacidade e a experimentação ética de longos séculos; chega às suas conclusões, e então não cria mais nada. O pré-requisito para uma codificação dessa espécie é reconhecer que os meios usados para estabelecer a autoridade de uma verdade adquirida dura e lentamente diferem fundamentalmente dos que seriam utilizados para demonstrá-la. Um livro de leis nunca relata a utilidade, as razões, a casuística de suas leis: com isso perderia o tom imperativo, o "tu deves", no qual a obediência se fundamenta. O problema encontra-se exatamente aqui. ­ Em um certo ponto da evolução de um povo, sua classe mais judiciosa, ou seja, com melhor percepção do passado e do futuro, declara que as séries experiências usadas para determinar como todos devem viver ­ ou podem viver ­ chegaram ao fim. O objetivo agora é colher os frutos mais ricos possíveis desses dias de experimentação e experiências difíceis. Em conseqüência, o que se deve evitar acima de tudo é o prolongamento da experimentação ­ a continuação do estado no qual os valores são volúveis, sendo testados, escolhidos e criticados ad infinitum. Contra isso se levantam duas paredes: de um lado, a revelação, isto é, a assunção de que as razões subjacentes às leis não possuem origem humana, que não foram buscadas e encontradas por um lento processo e após muitos erros, mas que possuem uma origem divina, foram feitas completas, perfeitas, sem uma história, como um presente, um milagre...; do outro lado, a tradição, isto é, a afirmação de que as leis permaneceram inalteradas desde tempos imemoriais, e que seria um crime contra os antepassados colocá-las em dúvida. A autoridade da lei assenta-se sobre estas duas teses: Deus a deu e os antepassados a viveram. ­ A razão superior desse procedimento está na intenção de distrair a consciência, passo a passo, de suas preocupações sobre os modos corretos de viver (isto é, aqueles que foram provados por uma vasta e minuciosamente considerada experiência), para que o instinto atinja um automatismo perfeito ­ um pressuposto essencial a toda espécie de mestria, toda perfeição na arte da vida. Confeccionar um código como o de Manu significa oferecer a um povo a chance de ser mestre, de chegar à perfeição ­ de aspirar ao mais sublime na arte da vida. Para tal fim deve-se torná-lo inconsciente: esse é o objetivo de toda mentira sagrada. ­ A ordem das castas, a lei suma e dominante, é meramente uma ratificação de uma ordem natural, de uma lei natural de primeira ordem, sobre a qual nenhum arbítrio, nenhuma "idéia moderna" exerce qualquer influência. Em toda sociedade saudável há três tipos fisiológicos que gravitam à diferenciação, mas que se condicionam mutuamente; cada qual tem sua própria higiene, sua própria esfera de trabalho, seu próprio sentimento de perfeição e maestria. Não é manu, mas a natureza que separa em uma classe aqueles que preponderam intelectualmente, em outra aqueles que são notáveis pela força muscular e temperamento, e numa terceira aqueles que não se distinguem, que somente demonstram mediocridade ­ esta última representa a grande maioria, as duas primeiras são a elite. A casta superior ­ que denomino a dos pouquíssimos ­ tem, sendo a mais perfeita, privilégios correspondentes: representa a felicidade, a beleza e tudo de bom sobre a Terra. Apenas os homens mais intelectuais têm direito à beleza, ao belo; apenas entre eles a bondade não significa fraqueza. Pulchrum est paucorum hominum: ser bom é privilégio. Nada lhes é mais impróprio que a rudeza, o olhar pessimista, os olhos afinados com a fealdade ­ ou a indignação por causa do aspecto geral das coisas. A indignação é um privilégio dos chandala; assim como o pessimismo. "O mundo é perfeito" ­ assim fala o instinto dos mais intelectuais, o instinto do homem que diz sim à vida. "A imperfeição, tudo que é inferior a nós, a distância, o pathos da distância, os próprios chandala, são parte dessa perfeição". Os homens mais inteligentes, sendo os mais fortes, encontram sua felicidade onde outros encontrariam apenas desastre: no labirinto, na dureza para consigo e para com os outros, no esforço; seu prazer está na auto-superação; neles o ascetismo torna-se uma segunda natureza, uma necessidade, um instinto. Consideram tarefas difíceis como um privilégio; para eles é um entretenimento lidar com fardos que esmagariam todos os outros... Conhecimento ­ uma forma de ascetismo. ­ Representam o tipo mais honroso de homens: mas isso não impede que também sejam os mais amáveis e mais alegres. Dominam não porque querem, mas porque são; não possuem a liberdade de ser os segundos. ­ A segunda casta: a esta pertencem os guardiões da lei, os mantenedores da ordem e da segurança, os guerreiros mais nobres e, acima de tudo, o rei, como a mais elevada forma de guerreiro, juiz e defensor da lei. Os segundos constituem o elemento executivo dos intelectuais; são aqueles que lhes estão mais próximos, os aliviando de tudo que há de grosseiro no trabalho de liderar ­ são seu séqüito, sua mão direita, os seus melhores discípulos. Nisso tudo, repito, nada é arbitrário, nada é "artificial"; apenas o contrário é artificial ­ ele destrói a natureza... A ordem das castas, a hierarquia simplesmente formula a lei suprema própria vida; a separação dos três tipos é necessária para conservar a sociedade, para possibilitar o surgimento dos tipos mais elevados, mais sublimes ­ a desigualdade de direitos é condição primordial para a existência de quaisquer direitos. ­ Um direito é um privilégio. Cada qual tem seus privilégios de acordo com seu modo de ser. Não subestimemos os privilégios dos medíocres. Quanto mais elevada, mais dura torna-se a vida ­ o frio aumenta, a responsabilidade aumenta. Uma civilização elevada é uma pirâmide: somente subsiste com uma base larga; seu pré-requisito é uma mediocridade sã e fortemente consolidada. O ofício, o comércio, a agricultura, a ciência, grande parte da arte, em suma, toda a gama de atividades ocupacionais, são apenas compatíveis com a mediocridade no poder e no querer; tais coisas estariam fora de seu lugar entre homens excepcionais; o instinto necessário encontrar-se-ia em contradição tanto com a aristocracia como com o anarquismo. O fato de o homem ser publicamente útil, uma engrenagem, uma função, é evidência de uma predisposição natural; não é a sociedade, mas o único tipo de felicidade de que são capazes, que faz deles máquinas inteligentes. Para os medíocres a felicidade é a mediocridade; possuem um instinto natural para dominar apenas uma coisa, para a especialização. Seria profundamente indigno da parte de um intelecto profundo ver algo de condenável na mediocridade em si. Ela é, de fato, o primeiro pré-requisito ao surgimento das exceções: é uma condição necessária a toda civilização elevada. Quando o homem excepcional trata o homem medíocre com mais delicadeza que si próprio ou seus iguais, isso não se trata de uma gentileza ­ é simplesmente seu dever... A quem odeio mais entre a ralé de hoje? A escumalha socialista, aos apóstolos de chandala que minam o instinto do trabalhador, seu prazer, seu sentimento de contentamento com uma existência pequena ­ que o tornam invejoso, que lhe ensinam a vingança... A injustiça nunca está desigualdade de direitos, mas na exigência de direitos "iguais"... O que é mau? Mas essa questão foi respondida: tudo que se origina da fraqueza, da inveja, da vingança. ­ O anarquista e o cristão têm a mesma origem...

O Anticristo - LVIII

LVIII

Em verdade, o fim pelo qual se mente faz uma grande diferença: se com isso preserva ou destrói. Há uma perfeita consonância entre o cristão e o anarquista: seus objetivos, seus instintos, direcionam-se somente à destruição. Basta voltarmo-nos à história para encontrar a prova disso: ela aparece com precisão espantosa. Já estudamos um código religioso cujo objetivo era converter as condições sob as quais a vida prospera numa organização social "eterna" ­ a missão que o cristianismo encontrou foi justamente destruir tal organização, porque com ela a vida prospera. Naquele, os benefícios que a razão produziu durante longos períodos de experimentação e incerteza foram aplicados nos aspectos mais remotos, fazia-se o todo esforço possível para colher os maiores, mais ricos e mais completos frutos; aqui, pelo contrário, os frutos são envenenados durante a noite... Aquilo que se erigia aere perennius, o imperium Romanum, a mais magnificente forma de organização sob condições adversas jamais alcançada, em comparação com a qual todo o anterior e o posterior assemelham-se a uma grosseria, uma imperfeição, um diletantismo ­ esses anarquistas santos fizeram da destruição do "mundo", ou seja, do imperium Romanum, uma questão de "devoção", até que não restasse pedra sobre pedra ­ até ao ponto em que os germanos e outros rústicos foram capazes de dominá-lo... O cristão e o anarquista: ambos são decadentes; ambos são incapazes de qualquer ato que não seja dissolvente, venenoso, degenerativo, hematófago; ambos têm por instinto um ódio mortal contra tudo que esta em pé, tudo que é grande, tudo que é durável, tudo que promete futuro à vida... O cristianismo foi o vampiro do imperium Romanum ­ destruiu do dia para a noite a vasta obra dos romanos: a conquista do solo para uma grande cultura que poderia aguardar por sua hora. Será possível que isso ainda não foi compreendido? O imperium Romanum que conhecemos, e que a história da província romana nos ensina a conhecer cada vez melhor ­ essa admirável obra de arte em grande estilo, era apenas um começo, sua construção estava calculada para provar seu valor por milhares de anos. Até hoje nada em escala semelhante sub specie aeterni foi construído, ou sequer sonhado! ­ Essa organização era forte o suficiente para resistir a maus imperadores: o acaso da personalidade não pode fazer nada em tais coisas ­ primeiro princípio de toda arquitetura genuinamente grande. Mas não era forte o suficiente para resistir contra a mais corrupta das corrupções ­ contra cristãos... Esses vermes furtivos que, sob a proteção da noite, da névoa e da duplicidade rastejam sobre todo indivíduo, sugando-lhe todo o interesse sério pelas coisas reais, todo o instinto para a realidade ­ essa turba covarde, efeminada e melíflua gradualmente alienou todas as "almas" desse edifício colossal ­ aquelas naturezas preciosas, virilmente nobres, que haviam encontrado em Roma sua própria causa, sua própria seriedade, seu próprio orgulho. A dissimulação dos hipócritas, o mistério dos conventículos, conceitos tão sombrios quanto o inferno, como o sacrifício do inocente, a unio mystica no beber sangue, e acima de tudo o fogo lentamente reavivado da vingança, da vingança de chandala ­ isso dominou Roma: o mesmo tipo de religião que, numa forma preexistente, Epicuro combateu. Leia-se Lucrécio para entender contra o que Epicuro fez guerra ­ não contra o paganismo, mas contra o "cristianismo", isto é, a corrupção das almas através dos conceitos de culpa, punição e imortalidade. ­ Combateu os cultos subterrâneos, todo o cristianismo latente ­ naquele tempo negar a imortalidade já era uma verdadeira salvação. ­ E Epicuro havia triunfado, todo intelecto respeitável em Roma era epicúreo ­ foi quando Paulo apareceu... Paulo, o ódio de chandala encarnado, inspirado pelo gênio, contra Roma, contra "o mundo" ­ o judeu, o judeu eterno par excellence... O que ele percebeu foi como, com a ajuda de um pequeno movimento sectário cristão, à parte do judaísmo, uma "conflagração mundial" poderia ser acesa; percebeu como, com o símbolo do "Deus na cruz", poderia condensar todas as sedições secretas, todos os frutos das intrigas anárquicas, em um imenso poder. "A salvação vem dos judeus" ­ cristianismo é a fórmula para sobrepor e agregar os cultos subterrâneos de todas variedades, por exemplo, o de Osíris, da Grande Mãe, de Mitra: era nisso que consistia o gênio de Paulo. Seu instinto estava tão seguro disso que, com ousada violência contra a verdade, colocou as idéias que fascinavam toda espécie de chandala na boca de sua invenção, do "salvador", e não apenas na boca ­ fez dele algo que até os sacerdotes de Mitra podiam entender... Foi esta sua revelação em Damasco: compreendeu que precisava da crença na imortalidade para despojar o valor do "mundo", que a idéia de "inferno" dominaria Roma ­ que a noção de um "além" significa a morte da vida. Niilista e cristão: são coisas que rimam, e não somente rimam...

O Anticristo - LIX

LIX

Todo o esforço do mundo antigo em vão: não tenho palavras para descrever meu sentimento ante tal monstruosidade. ­ E, considerando o fato de que esse era um trabalho meramente preparatório, que com granítica autoconsciência lançou os fundamentos para um trabalho de milhares de anos, todo o significado da antiguidade desaparece!... Para que serviram os gregos? Para que serviram os romanos? ­ Todos os pré-requisitos para uma cultura sábia, todos métodos científicos já existiam; o homem já havia aperfeiçoado a grande e incomparável arte de ler bem ­ essa é a primeira necessidade para a tradição da cultura, para a unidade das ciências; as ciências naturais, aliadas às matemáticas e à mecânica, palmilhavam o caminho certo ­ o sentido dos fatos, o último e mais precioso de todos os sentidos, tinha suas escolas, e suas tradições possuíam séculos! Compreende-se isso? Tudo que era essencial ao começo do trabalho estava pronto; ­ e o mais essencial, nunca será demais repeti-lo, são os métodos, que também são o mais difícil de desenvolver e o que há mais tempo têm contra si os costumes e a indolência. O que hoje reconquistamos com uma inexprimível vitória sobre nós mesmos ­ pois certos maus instintos, certos instintos cristãos ainda habitam nossos corpos ­, ou seja, o olhar afiado ante a realidade, a mão prudente, a paciência e a seriedade nas menores coisas, toda a integridade no conhecimento ­ tudo isso já existia há mais de dois mil anos! E mais, havia também bom gosto, um excelente e refinado tato! Não como um adestramento de cérebros! Não como a cultura "alemã", com seus modos grosseiros! Mas como corpo, como gesto, como instinto ­ em suma, como realidade... Tudo em vão! Do dia para a noite tornou-se memória! ­ Os gregos! Os romanos! A nobreza do instinto, o gosto, a investigação metódica, o gênio para a organização e administração, a fé e a vontade para assegurar futuro do homem, um grandioso sim a todas as coisas, visível sob a forma de imperium romanum e palpável a todos os sentidos, um grande estilo que não era simplesmente arte, mas que havia se transformado em realidade, verdade, vida... ­ Tudo destruído de um dia para outro, e não por uma convulsão da natureza! Não pisoteado até a morte por teutônicos e outros búfalos! Mas vencido por vampiros velhacos, furtivos, invisíveis e anêmicos! Não conquistado ­ apenas consumido!... A vingança oculta, a inveja mesquinha, agora dominam! Tudo que é miserável, intrinsecamente doente, tomado por maus sentimentos, todo o mundo de gueto da alma estava subitamente no topo! ­ Leia-se qualquer agitador cristão, por exemplo, Santo Agostinho, para entender, para sentir o cheiro daquela gente imunda que subiu ao poder. ­ Seria um erro, entretanto, presumir que havia falta de compreensão por parte dos líderes do movimento cristão: ­ ah, eles eram espertos, espertos até à santidade, esses pais da Igreja! O que lhes faltava era algo bastante diferente. A natureza deixou ­ talvez esqueceu-se ­ de dotá-los, ao menos modestamente, de instintos respeitáveis, íntegros, limpos... Dito entre nós, eles não são sequer homens... Se o islamismo despreza o cristianismo, tem mil razões para fazê-lo: o islamismo pressupõe homens...

O Anticristo - LX

LX

O cristianismo nos fez perder todos os frutos da civilização antiga, e mais tarde nos fez perder os frutos da civilização islâmica. A maravilhosa cultura dos mouros na Espanha, que era fundamentalmente mais próxima aos nossos sentidos e gostos que Roma e Grécia, foi pisoteada (­ não digo por que tipo de pés ­). Por quê? Porque devia sua origem aos instintos nobres e viris ­ porque dizia sim à vida, e a com a rara e refinada luxuosidade da vida mourisca!... Mais tarde os cruzados combateram algo ante o qual seria mais apropriado que rastejassem ­ uma civilização que faria mesmo o nosso século XIX parecer muito pobre e "atrasado". ­ O que queriam, obviamente, era saquear: o Oriente era rico... Coloquemos à parte os preconceitos! As cruzadas: pirataria em grande escala, nada mais! A nobreza alemã, que no fundo é uma nobreza de viking, estava em seu elemento com as cruzadas: a Igreja sabia muito bem como ganhar a nobreza alemã.... A nobreza alemã, sempre a "guarda suíça" da Igreja, estava ao serviço de todos maus instintos da Igreja ­ mas bem paga... Foi precisamente a ajuda das espadas, do sangue e do valor alemães que permitiu à Igreja fazer sua guerra de morte contra tudo que é nobre sobre a Terra! Aqui poderiam ser feitas perguntas bastante dolorosas. A nobreza alemã encontra-se fora da história das civilizações elevadas: a razão é óbvia... Cristianismo, álcool ­ os dois grandes meios de corrupção... Em suma, não havia mais escolha entre o islamismo e o cristianismo que há entre um árabe e um judeu. A decisão já foi tomada; não há mais liberdade de escolha aqui. Ou bem se é chandala ou bem se não é... "Guerra de morte a Roma! Paz e amizade com o islamismo!": esse foi o sentimento, essa foi a ação do grande espírito livre, do gênio entre os imperadores alemães, Frederico II. Como? Será preciso que um alemão seja gênio, espírito livre, para possuir sentimentos decentes? Não consigo imaginar como um alemão poderia sentir-se cristão...

O Anticristo - LXI

LXI

Neste momento faz-se mister evocar uma memória cem vezes mais dolorosa aos alemães. Os alemães impediram a Europa de colher os últimos grandes frutos de cultura ­ a Renascença. Compreende-se finalmente, será que por fim compreende-se o que era a Renascença? A transmutação dos valores cristãos ­ uma tentativa com todos os meios, todos os instintos e todos os recursos do gênio para fazer triunfarem os valores opostos, os valores mais nobres... Até ao presente essa foi a única grande guerra; nunca houve uma questão mais crítica que a da Renascença ­ que é minha questão também ­; nunca houve uma forma de ataque mais fundamental, mais direta, mais violentamente desferida por toda uma frente contra o centro do inimigo! Atacar no lugar decisivo, no próprio assento do cristianismo, e lá entronar os valores nobres ­ isto é, introduzi-los nos instintos, nas necessidades e desejos mais fundamentais dos que ocupavam o poder... Vejo diante de mim a possibilidade de um encantamento supraterreno: ­ parece-me que cintila com todas vibrações de uma beleza sutil e refinada, dentro da qual há uma arte tão divina, tão diabolicamente divina, que em vão se procuraria através dos milênios por semelhante possibilidade; vejo um espetáculo tão rico em significância e ao mesmo tempo tão maravilhosamente paradoxal que daria a todas as divindades do Olimpo o ensejo de irromper numa imortal gargalhada ­ César Bórgia como Papa!... Compreendem-me?... Pois bem, essa teria o sido a espécie de vitória que hoje somente eu desejo ­: com ela o cristianismo teria sido abolido! ­ Que sucedeu? Um monge alemão, Lutero, chegou a Roma. Esse monge, com todos os instintos vingativos de um padre malogrado no corpo, levantou uma rebelião contra a Renascença em Roma... Em vez de compreender, com profundo reconhecimento, o milagre que havia ocorrido: a conquista do cristianismo em sua sede ­ usou o espetáculo apenas para alimentar seu próprio ódio. O homem religioso pensa apenas em si mesmo. ­ Lutero viu apenas a corrupção do papado, enquanto exatamente o oposto estava tornando-se visível: a velha corrupção, o peccatum originale, o cristianismo já não ocupava mais o trono papal! Em seu lugar havia vida! Havia o triunfo da vida! Havia um grande sim a tudo que é grande, belo e audaz!... E Lutero restabeleceu a Igreja: a atacou... A Renascença ­ um evento sem sentido, uma grande futilidade! ­ Ah, esses alemães, quanto já nos custaram! Tornar todas as coisas vãs ­ sempre foi esse o trabalho dos alemães. ­ A Reforma; Leibniz; Kant e a assim chamada filosofia alemã; as guerras de "independência"; o Império ­ sempre um substituto fútil para algo que existia, para algo irrecuperável... Estes alemães, eu confesso, são meus inimigos: desprezo neles toda a sujidade nos valores e nos conceitos, a covardia perante todo sim e não sinceros. Há quase mil anos embaraçam e confundem tudo que seus dedos tocam; têm sobre suas consciências todas as coisas feitas pela metade, feitas nas suas três oitavas partes, de que a Europa está doente ­ e também pesa sobre suas consciências a mais imunda, incurável e indestrutível espécie de cristianismo ­ protestantismo... Se a humanidade nunca conseguir livrar-se do cristianismo, os culpados serão os alemães...

O Anticristo - LXII

LXII

­ Com isto concluo e pronuncio meu julgamento: eu condeno o cristianismo; lanço contra a Igreja cristã a mais terrível acusação que um acusador já teve em sua boca. Para mim ela é a maior corrupção imaginável; busca perpetrar a última, a pior espécie de corrupção. A Igreja cristã não deixou nada intocado pela sua depravação; transformou todo valor em indignidade, toda verdade em mentira e toda integridade em baixeza de alma. Que se atrevam a me falar sobre seus benefícios "humanitários"! Suas necessidades mais profundas a impedem de suprimir qualquer miséria; ela vive da miséria; criou a miséria para fazer-se imortal... Por exemplo, o verme do pecado: foi a Igreja que enriqueceu a humanidade com esta desgraça! ­ A "igualdade das almas perante Deus" ­ essa fraude, esse pretexto para o rancor de todos espíritos baixos ­ essa idéia explosiva terminou por converter-se em revolução, idéia moderna e princípio de decadência de toda ordem social ­ isso é dinamite cristã... Os "humanitários" benefícios do cristianismo! Fazer da humanitas uma autocontradição, uma arte da autopoluição, um desejo de mentir a todo custo, uma aversão e desprezo por todos instintos bons e honestos! Para mim são esses os "benefícios" do cristianismo! ­ O parasitismo como única prática da Igreja; com seus ideais "sagrados" e anêmicos, sugando da vida todo o sangue, todo o amor, toda a esperança; o além como vontade de negação de toda a realidade; a cruz como símbolo representante da conspiração mais subterrânea que jamais existiu ­ contra a saúde, a beleza, o bem-estar, o intelecto, a bondade da alma ­ contra a própria vida...

Escreverei esta acusação eterna contra o cristianismo em todas as paredes, em toda parte onde houver paredes ­ tenho letras que até os cegos poderão ler... Denomino o cristianismo a grande maldição, a grande corrupção interior, o grande instinto de vingança, para o qual nenhum meio é suficientemente venenoso, secreto, subterrâneo ou baixo ­ chamo-lhe a imortal vergonha da humanidade...

E conta-se o tempo a partir do dies nefastus em que essa fatalidade começou ­ o primeiro dia do cristianismo! ­ Por que não contá-lo a partir do seu último dia? ­ A partir de hoje? ­ Transmutação de todos os valores!...

O Anticristo - Lei contra o cristianismo

Lei contra o cristianismo

Datada do dia da Salvação: primeiro dia do ano Um (em 30 de Setembro de 1888, pelo falso calendário).

Guerra de morte contra o vício: o vício é o cristianismo

Artigo Primeiro ­ Qualquer espécie de antinatureza é vício. O tipo de homem mais vicioso é o padre: ele ensina a antinatureza. Contra o padre não há razões: há cadeia.

Artigo Segundo ­ Qualquer tipo de colaboração a um ofício divino é um atentado contra a moral pública. Seremos mais ríspidos com protestantes que com católicos, e mais ríspidos com os protestantes liberais que com os ortodoxos. Quanto mais próximo se está da ciência, maior o crime de ser cristão. Conseqüentemente, o maior dos criminosos é filósofo.

Artigo Terceiro ­ O local amaldiçoado onde o cristianismo chocou seus ovos de basilisco deve ser demolido e transformado no lugar mais infame da Terra, constituirá motivo de pavor para a posteridade. Lá devem ser criadas cobras venenosas.

Artigo Quarto ­ Pregar a castidade é uma incitação pública à antinatureza. Qualquer desprezo à vida sexual, qualquer tentativa de maculá-la através do conceito de "impureza" é o maior pecado contra o Espírito Santo da Vida.

Artigo Quinto ­ Comer na mesma mesa que um padre é proibido: quem o fizer será excomungado da sociedade honesta. O padre é o nosso chandala ­ ele será proscrito, lhe deixaremos morrer de fome, jogá-lo-emos em qualquer espécie de deserto.

Artigo Sexto ­ A história "sagrada" será chamada pelo nome que merece: história maldita; as palavras "Deus", "salvador", "redentor", "santo" serão usadas como insultos, como alcunhas para criminosos.

Artigo Sétimo ­ O resto nasce a partir daqui.

Nietzsche

Ciencia Redutora da Vida

Ciência Redutora da Vida - FRIEDRICH NIETZSCHE

Proclama-se com um ar de triunfo que «a ciência começa a dominar a vida». Pode ser que chegue a isso, mas é certo que a vida assim dominada não tem mais grande valor, porque é muito menos uma vida, e garante para o futuro muito menos vida que essa mesma vida fazia em outros tempos, dominada não pela ciência, mas pelos instintos e por algumas grandes ilusões.

Amor e Justica

Amor e Justiça - FRIEDRICH NIETZSCHE

Porque é que se sobrestima o amor em detrimento da justiça e se diz dele as coisas mais lindas, como se ele fosse uma entidade muito superior àquela? Pois não é ele visivelmente mais estúpido que aquela? Por certo, mas, precisamente por isso, tanto mais agradável para todos. Ele é estúpido e possui uma rica cornucópia; tira desta os seus presentes e distribui-os a qualquer pessoa, mesmo que esta não os mereça e até nem sequer lhe agradeça por isso. É imparcial como a chuva, a qual, segundo a Bíblia e a experiência, não só encharca o injusto até aos ossos, mas também, em determinadas circunstâncias, o justo.

Moralidade e Exito

Moralidade e Êxito - FRIEDRICH NIETZSCHE

Não são só os espectadores de um acto que, amiúde, medem o que é moral ou imoral no mesmo, consoante o êxito: não, o próprio autor também o faz. Pois os motivos e as intenções raramente são suficientemente claros e simples, e, às vezes, a própria memória parece perturbada pelo efeito do acto, de modo que a pessoa atribui ao seu próprio acto motivos falsos ou trata como essenciais os motivos secundários. O êxito dá, muitas vezes, a um acto todo o honesto brilho da boa consciência, um malogro coloca a sombra do remorso sobre a acção mais respeitável. Daí resulta a conhecida prática do político, que pensa: «Dai-me simplesmente o êxito! Com ele, também terei posto do meu lado todas as almas honestas... e ter-me-ei tornado honesto, perante mim próprio». De maneira análoga, o êxito é suposto substituir a melhor fundamentação.

Os Poetas Tornam a Vida mais Leve

Os Poetas Tornam a Vida mais Leve - FRIEDRICH NIETZSCHE

Os poetas, na medida em que também querem tornar mais leve a vida das pessoas, ou desviam o olhar do trabalhoso presente ou ajudam o presente a adquirir novas cores, graças a uma luz vinda do passado que fazem irradiar sobre ele. Para poderem fazê-lo, têm eles próprios de ser, em muitos aspectos, seres voltados para trás: de maneira que se os pode utilizar como pontes para chegar a tempos e concepções muito distantes, a religiões e civilizações em vias de extinção ou já extintas. -... É certo que há algumas coisas desfavoráveis a dizer quanto aos meios de que eles se servem para aligeirar a vida: apenas sossegam e curam provisoriamente, só de momento; até impedem as pessoas de trabalhar na realidade por uma melhoria da sua situação, precisamente enquanto suprimem e descarregam, por meio de paliativos, a paixão dos insatisfeitos, que incitam à acção.

A Grandeza de Caracter

A Grandeza de Carácter - FRIEDRICH NIETZSCHE

Obedecer aos próprios sentimentos? Arriscar a vida ao ceder a um sentimento generoso ou a um impulso de momento... Isso não caracteriza um homem: todos são capazes de fazê-lo; neste ponto, um criminoso, um bandido, um corso certamente superam um homem honesto. O grau de superioridade é vencer em si esse elã e realizar o acto heróico, não por um impulso, mas friamente, razoavelmente, sem a expansão de prazer que o acompanha. Outro tanto acontece com a piedade: ela há-de ser habitualmente filtrada pela razão; caso contrário, é tão perigosa como qualquer outra emoção. A docilidade cega perante uma emoção - tanto importa que seja generosa ou piedosa como odienta - é causa dos piores males. A grandeza de carácter não consiste em não experimentar emoções; pelo contrário, estas são de ter no mais alto grau; a questão é controlá-las e, ainda assim, havendo prazer em modelá-las, em função de algo mais.

O Efeito da Verdadeira Maturidade

O Efeito da Verdadeira Maturidade - FRIEDRICH NIETZSCHE

A alternância de amor e ódio caracteriza, durante muito tempo, a condição íntima de uma pessoa que quer ser livre no seu juízo acerca da vida; ela não esquece e guarda rancor às coisas por tudo, pelo bom e pelo mau. Por fim, quando, à força de anotar as suas experiências, todo o quadro da sua alma estiver completamente escrito, já não desprezará nem odiará a existência, mas tão-pouco a amará, antes permanecerá por cima dela, ora com o olhar da alegria, ora com o da tristeza, e, tal como a Natureza, a sua disposição ora será estival, ora outunal. -... Quem quiser seriamente ser livre perderá de mais a mais, sem qualquer constrangimento, a propensão para os erros e vícios; também a irritação e o aborrecimento o acometerão cada vez mais raramente. É que a sua vontade não quer nada mais instantaneamente do que conhecer e o meio para tanto, ou seja, a condição permanente em que ele está mais apto para o conhecimento.

A Mentira - FRIEDRICH NIETZSCHE

A Mentira - FRIEDRICH NIETZSCHE

Porque é que, na maior parte das vezes, os homens na vida quotidiana dizem a verdade? Certamente, não porque um deus proibiu mentir. Mas sim, em primeiro lugar, porque é mais cómodo, pois a mentira exige invenção, dissimulação e memória. Por isso Swift diz: «Quem conta uma mentira raramente se apercebe do pesado fardo que toma sobre si; é que, para manter uma mentira, tem de inventar outras vinte». Em seguida, porque, em circunstâncias simples, é vantajoso dizer directamente: quero isto, fiz aquilo, e outras coisas parecidas; portanto, porque a via da obrigação e da autoridade é mais segura que a do ardil. Se uma criança, porém, tiver sido educada em circunstâncias domésticas complicadas, então maneja a mentira com a mesma naturalidade e diz, involuntariamente, sempre aquilo que corresponde ao seu interesse; um sentido da verdade, uma repugnância ante a mentira em si, são-lhe completamente estranhos e inacessíveis, e, portanto, ela mente com toda a inocência.

Escolhe Inimigos Que Te Merecam - FRIEDRICH NIETZSCHE

Escolhe Inimigos Que Te Mereçam - FRIEDRICH NIETZSCHE

Gosto dos valentes; mas não basta bater a torto e a direito; é preciso saber ainda no que se bate. E muitas vezes há mais coragem em se conter e passar adiante, a fim de se reservar para um adversário mais digno. Tende apenas inimigos dignos de ódio, e não inimigos desprezíveis; é necessário que possais estar orgulhosos dos vossos inimigos; já vos ensinei isso. É necessário reservardes-vos para um adversário mais digno, meus amigos; por isso tereis de passar por cima de muitas ofensas, - passar por cima de muita canalha que vos massacrará com as palavras povo e nação. Livrai o vosso olhar de se misturar às suas contestações. É um matagal de direitos e de abusos. Ter de considerá-los irrita. Lançar aí os olhos - atirar-se para a confusão - é a mesma coisa; ide-vos pois para os bosques e deixai dormir a vossa espada! Segui os caminhos que vos pertencem. E deixai povos e nações seguirem os seus escuros caminhos, na verdade, nos quais não brilha uma única esperança!

Os Ciumes Das Nossas Virtudes - FRIEDRICH NIETZSCHE

Os Ciúmes Das Nossas Virtudes - FRIEDRICH NIETZSCHE

Meu irmão, és feliz se só tens uma virtude e não várias: pois passarás mais facilmente a ponte. É uma distinção ter muitas virtudes, mas é sorte bem dura; e não são poucos os que se têm ido matar ao deserto, cansados de serem combate e campo de batalha das suas próprias virtudes. Meu irmão, serão um mal a guerra e as batalhas? Mas são males necessários, e é necessário que as tuas virtudes tenham ciúmes umas das outras e estejam desconfiadas umas das outras e se caluniem entre si. Vê, cada uma das tuas virtudes é ávida de tudo possuir, cada uma quer que a totalidade da tua alma lhe sirva de arauto, quer toda a tua força na cólera, no ódio e no amor. Cada uma das tuas virtudes é ciosa das outras, e o ciúme é uma coisa terrível. As próprias virtudes podem morrer de ciúme. O que está cercado pela chama do ciúme acaba, como o escorpião, por voltar contra si mesmo o seu aguilhão envenenado. Ai! meu irmão, nunca viste uma virtude caluniar-se e apunhalar-se a si própria? O homem é um ser que deve superar-se, por isso necessitas amar as tuas virtudes - porque por elas morrerás.

As Três Fases da Moralidade - FRIEDRICH NIETZSCHE

As Três Fases da Moralidade - FRIEDRICH NIETZSCHE

Temos o primeiro sinal de que o animal se tornou homem, quando a sua actuação já não se relaciona com o bem-estar momentâneo, mas com o duradouro, pro­va de que o homem adquire o sentido do útil, do adequado: é então que, pela primeira vez, irrompe o livre senhorio da razão. Um estádio ainda mais ele­vado é alcançado, quando ele age consoante o prin­cípio da honra; graças ao mesmo, ele adapta-se, sub­mete-se a sentimentos comuns, e isso ergue-o muito acima da fase, em que só a utilidade entendida em termos pessoais o guiava: ele respeita e quer ser res­peitado, isto é, entende o proveito como dependente do que ele opina acerca dos outros, do que os outros opinam acerca dele. Finalmente, na fase mais eleva­da da moralidade em uso até agora, ele age segundo o seu critério quanto às coisas e às pessoas, ele próprio determina para si e para outros o que é honroso, o que é útil; tornou-se o legislador das opiniões, em conformidade com o conceito cada vez mais desen­volvido do útil e do honroso. O conhecimento habi­lita-o a preferir o mais útil, ou seja, a colocar o pro­veito geral e duradouro à frente do pessoal, a respeitosa estima de valia geral e duradoura à frente da momentânea; ele vive e actua como indivíduo co­lectivo.

O Embuste dos Artistas e Escritores - FRIEDRICH NIETZSCHE

O Embuste dos Artistas e Escritores - FRIEDRICH NIETZSCHE

Estamos habituados, perante tudo o que é perfeito, a omitir a questão do seu processo evolutivo, regozijando-nos antes com a sua presença, como se ele tivesse saído do chão por artes mágicas. Provavelmente, estamos ainda, neste caso, sob o efeito residual de um antiquíssimo sentimento mitológico. Quase nos sentimos ainda -por exemplo, num templo grego como o de Pesto como se, numa manhã, um deus, brincando, tivesse construído a sua morada com tão gigantescos fardos. Outras vezes, como se um espírito tivesse subitamente sido metido por encanto dentro duma pedra e quisesse, agora, falar através dela. O artista sabe que a sua obra só produz pleno efeito, se fizer crer numa improvisação, numa miraculosa instantaneidade da sua criação; e, assim, ele ajuda mesmo a essa ilusão, introduzindo na arte, ao começo da sua criação, aqueles elementos de entusiástica inquietação, de desordem que tacteia às cegas, de sonho atento, como forma de iludir, a fim de dispor o espírito do espectador ou do ouvinte de modo a que ele creia no súbito brotar da perfeição. A ciência da arte, como é evidente, tem de contradizer essa ilusão da maneira mais determinada e apontar as conclusões erróneas e os maus hábitos do intelecto, graças aos quais este cai na rede do artista.

A Necessidade do Proximo - FRIEDRICH NIETZSCHE

A Necessidade do Próximo - FRIEDRICH NIETZSCHE

Nós só sentimos agrado para com os semelhantes - ou seja pelas imagens de nós próprios - quando sentimos comprazimento connosco. E quanto mais estamos contentes connosco, mais detestamos o que nos é estranho: a aversão pelo que nos é estranho está na proporção da estima que temos por nós. É em consequência dessa aversão que nós destruímos tudo o que é estranho, ao qual assim mostramos o nosso distanciamento. Mas o menosprezo por nós próprios pode levar-nos a uma compaixão geral para com a humanidade e pode ser utilizado, intencionalmente, para uma aproximação com os demais. Temos necessidade do próximo para nos esquecermos de nós mesmos: o que leva à sociabilidade com muita gente. Somos dados a supor que também os outros têm desgosto com o que são; quando isto se verifica, então receberemos uma grande alegria: afinal, estamos na mesma situação. E, talqualmente nos vemos forçados a suportar-nos, apesar do desgosto que temos com aquilo que somos, assim nos habituamos a suportar os nossos semelhantes. Assim, nós deixamos de desprezar os outros; a aversão para com eles diminui, e dá-se a reaproximação. Eis porque, em virtude da doutrina do pecado e da condenação universal, o homem se aproxima de si mesmo. E até aqueles que detêm efectivamente o poder são de considerar, agora como dantes, sob este mesmo aspecto: é que, «no fundo, são uns pobres homens

Absurdo, Liberdade e Projecto - FRIEDRICH NIETZSCHE

Absurdo, Liberdade e Projecto - FRIEDRICH NIETZSCHE

Uma vez admitidos dois factos: que o devir não tem fim e que não é dirigido por qualquer grande unidade na qual o indivíduo possa mergulhar totalmente como num elemento de valor supremo, resta só uma escapatória possível: condenar todo esse mundo do devir como ilusório e inventar um mundo situado no além, que seria o mundo verdadeiro. Mas, logo que o homem descobre que este mundo não é senão construído sobre as suas próprias necessidades psicológicas e que ele não é de nenhum modo obrigado a acreditar nele, vemos aparecer a última forma do niilismo, que implica a negação do mundo metafísico e que a si mesma se proíbe de crer num mundo verdadeiro. Alcançado este estado, reconhecemos que a realidade do devir é a única realidade e abstemo-nos de todos os caminhos afastados que conduziriam à crença em outros mundos e em falsos deuses - mas não suportamos este mundo que não temos já a vontade de negar. -... Que se passou portanto? Chegámos ao sentimento do não valor da existência quando compreendemos que ela não pode interpretar-se, no seu conjunto, nem com a ajuda do conceito de fim, nem com a do conceito de unidade, nem com a do conceito de verdade. Não chegamos a nada, não logramos coisa nenhuma dessa espé cie; a unidade global não aparece na pluralidade do devir: o carácter da existência não é o de ser verdadeira, mas o de ser falsa -... não há razão alguma para nos persuadirmos de que existe um mundo verdadeiro. -... Em suma, as categorias de fim, de unidade, de ser, graças às quais demos um valor ao mundo, retiramos-lhas e o mundo parece ter perdido todo o valor.